O Ultimato dos Vingadores

Uma casa de campo toda de madeira, cercada por um cenário idílico. Ao lado dela, num suporte também de madeira, repousam uma grande e imponente armadura e um capacete de metal. Acima deles, um céu roxo-alaranjado derrama seus raios de luz sobre delicadas pétalas de flores.

Pela paisagem, caminha um senhor de semblante fatigado. As marcas e cicatrizes que ele carrega no rosto e no corpo sugerem um passado de árduas batalhas. A plenitude e a serenidade em seu olhar expressam um sentimento de dever cumprido e de uma vida cujo maior propósito fora alcançado.

Corpulento e robusto, seu caminhar é lento –  nota-se que já não possui mais a agilidade de outrora. Cada um de seus gestos é um gesto de contemplação. A delicadeza com que seus enormes dedos acariciam uma pétala de flor é uma demonstração de seu apreço e de sua realização pessoal frente um universo em harmonia e equilíbrio, onde tudo é como deveria ser.

É surpreendente, portanto, que um grupo formado por um punhado de homens e mulheres mais jovens, extremamente fortes, ágeis e bem armados surja de supetão neste cenário e ataque covardemente este senhor com força máxima; de maneira absolutamente desproporcional a qualquer perigo ou ameaça que ele aparentemente possa oferecer. Cada um deles se reveza entre socos, chutes e tiros nas agressões; apenas para arrancar-lhe a cabeça fora com um golpe de machado ao final de tudo.

Fica claro com esta sequencia que toda vingança é também um ato de vilania, pois nada constrói. Tudo o que faz é destruir malfeitores, sem desfazer, corrigir ou reparar os males causados. Talvez por isso, neste embate entre os Vingadores e Thanos, descrito acima, e que se dá no primeiro terço de Vingadores: Ultimato, nossos heróis tenham a aparência de vilões.

De imediato, isso é algo que confere ao filme um grau superior à boa parte das produções da Marvel até aqui. Em Ultimato existem tons de cinza.

Levar a cabo uma vingança contra Thanos, pelo simples fato de serem Vingadores, não é o suficiente. Ao contrário, é desdenhar e menosprezar tudo o que fez destes personagens heróis; é ir na contramão de toda a jornada que os trouxe até este momento. É aprofundar ainda mais a ferida daqueles que se foram.

Ao início de Ultimato, encontramos estes heróis destruídos, vencidos e desiludidos. Eles falharam. Perderam tudo o que lhes era mais querido e, com isso, também se fora todo seu heroísmo.

Incapazes de reverter a destruição causada por Thanos ao final de Guerra Infinita, tudo o que fazem é alimentar o rancor, a frustração e a mágoa de tudo o que perderam com, ainda novamente, mais um ato de destruição.

Evidentemente, há sempre um caminho. Melhor dizendo, 1 em 13 milhões. E com soluções de roteiro criativas, envolvendo viagens no tempo – que oferecem inúmeros fan services – os Vingadores encontram um jeito de se tornar algo mais do que vingadores. O único heroísmo possível frente uma figura como Thanos não é a da simples destruição desta força antagônica, mas a da construção de um novo futuro.

Dentre 22 produções do Universo Marvel, ao longo de onze anos, eis o que distancia Guerra Infinita e Ultimato da maioria dos outros filmes; a força antagonista de Thanos.

Em sua obstinada missão de dizimar metade de todos os seres vivos do universo para reestabelecer o equilíbrio dos planetas, Thanos eleva os riscos da franquia para um novo patamar. Com ele em cena, há muito mais em jogo – e os Vingadores tem muito (senão tudo) a perder.

Especialmente porque suas motivações não são vis ou simplistas; há um traço de moralidade que norteia sua jornada; um propósito ético e uma visão de mundo que, mesmo sob um viés extremamente deturpado, carrega uma certa nobreza e coerência – perfeitamente expressos no gestual, na movimentação, e na fala ponderada e cadenciada de Josh Brolin, cuja encarnção de Thanos estabelece o vilão como um dos grandes e emblemáticos personagens do cinema de fantasia.

O fator Thanos é simultaneamente a força motora de Guerra Infinita e Ultimato, bem como o elemento antagônico necessário para fechar todo um ciclo e aposentar alguns dos personagens mais queridos desta franquia.

Afinal de contas, se todos estes personagens hoje habitam o imaginário coletivo e popular de milhões de jovens, crianças e adultos ao redor do mundo, eles merecem se despedir – e alguns de fato se despedem definitivamente – enfrentando um inimigo a altura, e Thanos certamente é este inimigo. Sua presença dá um sopro de vida mais do que necessário a uma franquia que já corre a mais de uma década e que não seria mais capaz de se sustentar apenas sobre piadas e cenas de batalhas repletas de efeitos especiais.

Até porque, destas 22 produções, boa parte é demasiadamente enfadonha, piegas e maçante – me refiro particularmente aos títulos protagonizados por Capitão América, Thor e Capitã Marvel; bem como ‘Era de Ultron’; filmes formulaicos, cuja previsibilidade da jornada heroica e narrativa beiram o insuportável. Absolutamente o oposto da narrativa de Ultimato ou Guerra Infinita; que encontram caminhos narrativos surpreendentes, chocantes e impactantes; sem medo de ousar, ou dizer adeus a personagens chaves deste universo.

Evidentemente, esses últimos dois filmes não vêm sem suas próprias falhas. Assumindo a direção desta etapa final que traz uma conclusão para a saga de Thor, Hulk, Homem de Ferro, Viúva Negra, Hawkeye e Capitão América, os irmãos Joe e Anthony Russo pouco fazem para enriquecer a experiência dramática do filme.

Não há espaço, aqui, para entrelinhas, ou para emoções subjetivas e dúbias; todo diálogo é altamente expositivo e serve de muleta para a narrativa; todo sentimento é imposto forçosamente através de falas e gestos; jamais alguma ideia é sugerida por movimento de câmera ou simplesmente pela sutileza da atuação de um elenco estelar. Exemplo disso é uma cena onde Hulk ataca Thanos e grita “você matou trilhões de pessoas”. Qual a necessidade de expor isso desta maneira? Uma plateia que acompanha esta saga há onze anos sabe do sofrimento e do rancor que o personagem de Mark Ruffalo carrega; ainda mais com um ator deste calibre, um simples lance de olhar revelaria toda essa mágoa contida.

Nada disso, porém, chega a ser um problema em si. Afinal de contas, como ouvi de um amigo “se você vai ao circo, espere ver palhaços e não obras de arte”. E mesmo que sempre haja espaço para enriquecer uma produção independentemente de seu gênero ou público – as trilogias de ‘Dark Knight’ e ‘O Senhor dos Anéis’ tão aí para nos demonstrar isso – um filme é o que ele é e não o que um crítico ou sua plateia desejariam que fosse. E como entretenimento e conclusão de uma etapa importante de sua saga, Ultimato é um filme mais do que satisfatório.

Se aos irmãos Russo falta inventividade e sensibilidade dramática capaz de enriquecer e aprofundar as dimensões emotivas de seus heróis, o carisma de seu elenco tem toda a simpatia do público. Qualquer carência dramática que o filme possa ter é suprida pela qualidade de seu elenco e pela inteligência do roteiro de Stephen McFeely e Christopher Markus.

É uma simples questão de lógica. Estúdios Marvel/Disney reuniram em seu elenco um sem fim de nomes do primeiro escalão hollywoodiano. Quem tem ouro nas mãos, que faça valer. E a dupla de roteiristas gasta aonde deve. Durantes as duas primeiras partes do longa, o foco é a relação destes personagens entre si.

É isso o que torna a experiência mais rica. A excelente construção destas personalidades e as mais diversas interações entre elas. E que vantagem é ter Robert Downey Jr. à frente desta narrativa. Seu Homem de Ferro – que inaugurou, pavimentou e ajudou a solidificar todo este universo Marvel –  é a grande força dramática para onde convergem a atenção, simpatia e paixão de toda uma legião de fãs mundo afora.

Nenhum outro personagem em cena atrai tanta compaixão e torcida. Sua trajetória, iniciada há 11 anos, é a responsável por levar adiante a narrativa de Ultimato – e nada poderia ser mais justo. Se o filme carece de um cérebro – pela limitação de seus diretores – Robert Downey Jr. o enche de alma e coração.

A opção obvia em centrar a trama no sexteto original – como forma de despedida e fim deste ciclo da primeira fase do MCU – seria problemática não fosse o Stark de Downey Jr.

Dentre o Capitão de Chris Evans, o Thor de Hemsworth, a Viúva Negra de Scarlett Johanson, o Hawkeye de Jeremy Renner e o Hulk de Mark Ruffalo, o Homem de Ferro parece ser o único a ter resistido à fadiga do tempo; seu carisma persistiu e seu apelo dramático sobreviveu ao desgaste dos anos –  que parece ter tornado datadas as piadas, os gestos e as emoções de todos os seus companheiros originais.

Comparados à astúcia, soberba e inteligência do Doutor Estranho, ao charme bobo e gracioso de Starlord, à ferocidade, honradez e nobreza do Pantera Negra, e à doçura e graça de Peter Parker, as peculiaridades e personalidades do quinteto original não tem mais o mesmo apelo.

Que felicidade termos tido no Homem de Ferro uma exceção.

Pois é o herói de Downey Jr. que compõe com o Thanos de Josh Brolin as duas forças antagônicas que levam toda a narrativa adiante. E com a grandeza de ambos os personagens toda mágoa, ressentimento e raiva adquire contornos épicos. Num longa-metragem onde cada terço de filme parece pontuado por uma evolução emotiva e dramática de Tony Stark, indo do rancor à redenção, Vingadores: Ultimato fecha um ciclo importantíssimo de sua saga presenteando seus fãs com um sublime e emocionante desfecho para o seu mais importante protagonista.

A pergunta que fica é; será o Universo Marvel capaz de continuar pulsando firme e forte sem um coração? Parece urgente que encontre nos novos protagonistas sua nova força motora. E pelo desfecho de Ultimato, eles tem tudo para fazer isso acontecer.

Por Matheus Rego
24/04/2019 21h50