A música brasileira começou os anos 1970 num momento de transformação. A tropicália, a MPB, a Jovem Guarda: alguns dos pilares da música brasileira daquela época haviam se encontrado para desconstruir e revolucionar ideias. Era um momento de ruptura. O iê-iê-iê, por exemplo, já não era uma novidade. Pelo contrário, o fim da Jovem Guarda fez com que muitos dos nomes de sucesso desse movimento trilhassem novos caminhos. Entre esses artistas, que escreveram uma das páginas mais importantes da nossa música, estava Erasmo Carlos. Chegando ao 30 anos, vivendo uma época de prazeres em excesso, Erasmo buscava um novo rumo. Um dos nossos maiores ícones do estilo de vida roqueiro entrou no ano de 1971 disposto a quebrar seus paradigmas. Erasmo Carlos, que não foi necessariamente um tropicalista, mostrou que também sabia como misturar, e muito bem, os novos elementos que colocavam a música brasileira em ebulição. E, assim, com um pouco de soul, um pouco de rock, um pouco de samba, muita malícia e swing, “Carlos, Erasmo” nasceu.
Erasmo Carlos é um dos nossos maiores gênios. E esse disco ajuda a entender o porquê. Para um momento de transição pessoal e musical – e, consequentemente, de incertezas – ele se juntou a outros nomes incríveis da nossa música para construir um disco que representasse o seu amadurecimento. Como ele definiria, esse álbum foi sua estreia na música adulta, após o prazeroso bê a bá da Jovem Guarda. Erasmo divide as composições com parceiros como Caetano Veloso, Roberto Carlos, Taiguara, Jorge Ben, Paulo Sérigo Valle, Marcos Valle, entre outros. Um baita time de compositores. As gravações também contaram com super participações, como dos Mutantes Liminha e Dinho Leme e do incrível guitarrista Lanny Gordin. A produção e os arranjos, além do próprio Erasmo, contaram com contribuições de Manoel Barebein, Nelson Motta, Rogério Duprat e Chiquinho de Moraes. Esses ingredientes, adicionados a um Erasmo pronto para investir em novos swings e sonoridades, deixando-se influenciar pelo samba e pela tropicália sem perder sua verve rock n’ roll, resultaram num disco ousado, que explora sonoridades sem medos, de forma natural. É o Tremendão experimentando novas roupas e novas formas de pensar.
Caetano escreveu ‘De Noite na Cama’ especialmente para Erasmo. Alguns elementos surpreendem de início: o berimbau, o piano, o clima samba-soul envolvente. O refrão, cantando em coro, e a percussão contagiam nessa canção. Na sequência, uma mudança na vibe: ‘Masculino Feminino‘ é uma balada onde Erasmo e Maria Fossa conversam apaixonados. Essa segunda faixa é um respiro para a forte sequência que se prepara. O baixo ronca anunciando um dos grandes momentos desse disco. Uma das perólas da sua eterna parceria com o Rei Roberto, ‘É Preciso Dar Um Jeito Meu Amigo’ é uma baita canção de rock. A letra, um grito de indignação, se desenrola ora sobre o groove, ora sobre uma jam psicodélica. Liminha e Dinho Leme trazem o gosto ácido do rock que os Mutantes faziam naquela época.
E agora o disco não nos deixa nem mesmo respirar. ‘Dois Animais na Selva Suja da Rua‘, em paceria com Taiguara, trás um poderoso arranjo de teclas, como os do Rodrix, e trata de amores marginais, um pouco como aqueles do Lou Reed. A variação nas influências e nas contruções das dinâmicas das composições segue a todo vapor. ‘Gente Aberta‘ começa despreocupada e experimenta um crescente até atingir seu ápice, assim como o amor livre. Diferente da próxima faixa. O fuzz psicodélico da guitarra anuncia ‘Agora Ninguém Chora Mais‘, uma parceria com Jorge Ben. O coro, como aquele de ‘De Noite na Cama’, conduz a música, que encerra-se com uma sobreposição de vozes. A capacidade e a vontade de experimentar novos sons fica evidente ao longo do disco. A bíblica – e em clima de oração – ‘Sodoma e Gomorra‘ antecede a ótima ‘Mundo Deserto’. Um funk com pegada rock n’ roll que embala aquele velho otimismo que tenta sobreviver num mundo de caos. Uma música que trás o verso ‘não acredito no dito maldito que o amor já morreu’ ainda precisa nos fazer sentido.
Para entender a balada ‘Não Te Quero Santa‘ é preciso saber que o “santa” vem como um adjetivo, e não como um substantivo, numa música de libertação. O disco se aproxima do final com ‘Ciça Cecília‘, que foi tema da novela “A Próxima Atração” e, com seu swing e backings vocals, lembra o groove das baladas do Tim Maia. A psicodelia e as construções que misturam jazz e rock aparecem na balada recheada de harmonias vocais ‘Em Busca das Canções Perdidas Nº 2′. As duas faixas finais do disco tem arranjos assinados pelo maestro Rogério Duprat e tem muito da tropicalia nas suas essências. Assinada por Paulo Sergio Valle e Marcos Valle, numa letra interessante e intrigante, ’26 Anos de Uma Vida Normal’, também é um dos destaques do disco. E, por fim, ‘Maria Joana’, que deixa claro a musa inspiradora da canção. Quase 40 anos depois, em tempos de discussão em torno da descriminalização das drogas, escutar essa relaxada e descontraída música pode até sugerir algumas reflexões.
Este discão mostrou que o Erasmo ainda tinha muito a produzir mesmo depois da Jovem Guarda. Sua capacidade de explorar sonoridades, aliada a um momento de renovação, liberdade e criação, foram os elementos necessários para criar uma obra com vários nuances, que não se prendeu ao passado e se libertou do futuro, registrando um momento de transformação, tanto do Erasmo, quanto da música brasileira. Seja no rock, no samba ou no soul, o Tremendão é o Tremendão.
https://www.youtube.com/watch?v=lYK-7bCp5X0
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